terça-feira, 14 de abril de 2009

Zé Ninguém

Foto Guto: ilustrativa
Imagino que seu nome seja Zé. Simplesmente Zé. Eu o vejo sempre. Nunca conversamos. As pessoas passam por ele e não o vêem. Ninguém enxerga o Zé... O Zé Ninguém. Ele permanece lá, no mesmo lugar. Alto, magro, negro, de cabelos esvoaçantes e brancos.
O Zé tem cabelos brancos, embora sua idade seja, aparentemente, entre 40 e 50 anos...E fico a imaginar: terá filhos, netos, já amou alguém? Será que foi amado por um momento, um segundo... O que fez o Zé parar naquele lugar? Será que a vida lhe pareceu tão dura e árdua, que ele preferiu isolar-se? Ou será que o isolaram?
Talvez, no egoísmo da sociedade moderna, a família o tenha sentido como um fardo e tratado de se livrar do Zé. Como pode alguém viver sozinho, numa praça? É, uma praça! Há árvores, parque infantil, um coreto de arquitetura do início do século XX.
É um lugar bonito, com uma fonte que atrai muitas crianças. Alegres, elas pulam e brincam de um lado para outro, molhando as mãos e salpicando uns aos outros. Falam alto, gritam eufóricas, riem felizes... O Zé as observa como se estivesse resgatando o passado.Como se aquilo não fosse o presente que lhe cerca e sim uma visão dos dias de outrora.
Ele perambula para lá e para cá, sempre com as mesmas roupas e a mesma postura, um ar cansado, como se tivesse trabalhado... trabalhado... até a exaustão. O seu calçado preto, de borracha, não faz barulho ao caminhar, exceto quando pisa nas folhas secas.
Às vezes parece não me ver passar. Outras vezes me olha, como se pensasse em várias perguntas. Não parece disposto a responder às minhas indagações. Ele tem um olhar distante como se enxergasse um mundo diferente do que o cerca. O que será que enxerga o Zé? Provavelmente não entende a pressa desenfreada dos que por ali passam, muito menos o barulho dos carros frenéticos, buzinando incessantemente; dos caminhões que soltam uma fumaça escura e insuportável, das motos que correm contra o tempo.. Vejo isso quando passo... Mas o Zé está estático, com aquele olhar perdido, vendo as crianças no balanço que vai pra lá e pra cá... Caminha lentamente, pisa devagar nas folhagens, deita na grama, toca flauta. Isso mesmo! O Zé toca flauta. Não consigo entender que música ele toca, talvez nem ele saiba...
Ele vive sem televisão, computadores, sem os aparelhos de som e demais itens eletrônicos, tão fundamentais a nossa existência. Acredito que o Zé daria risada disso. Nós, que nos julgamos experientes e capazes, somos tão dependentes da era moderna e de seus acessórios! E de repente o Zé me remete ao Baudelaire: ambos têm aversão a esta ânsia desenfreada pelas máquinas da modernidade. Os dois, Zé e Baudelaire, tão distantes, tão próximos... Consigo imaginá-los batendo papo na praça.
Pela aparente idade do Zé, ele não deve ser aposentado e não tem trabalho. Desempregado... Vida difícil, a do Zé... Será que ele não recebe alguma renda? Eu nunca o vi pedindo dinheiro. Meu Deus, como ele sobrevive?! Será que um dia conseguirá aposentar-se? Não consigo imaginá-lo em filas de banco, estressando-se com o tempo que não passa, o funcionário que conversa no telefone ou com alguém ao lado, enquanto a fila não anda... Ou ainda esperar pela mocinha responsável pelas instruções do caixa eletrônico, que parece perdida diante de tantas dúvidas...
É bem provável que o Zé nem tenha idéia das filas do INSS. Ele conforma-se com as lembranças, com seu mundo interno, aquele que existe distante, onde somente seu pensamento alcança. Este Zé... Na fome, no frio, no calor, sobrevive... Se perguntassem ao Zé aquela pergunta tola que fazemos a todos que conhecemos e até ao nosso espelho, aquela pergunta tão essencial: “O que você faz da vida?”, o Zé, na sua simplicidade, certamente responderia: “Vivo”. Cobramos realização profissional, sucesso, topo, queremos alcançar a felicidade plena, o amor perfeito, os amigos exemplares, a profissão invejável, o melhor carro, uma mansão, belos filhos, família ímpar... E nem sempre estamos em paz... Já o Zé tem uma paz plena que emana de si próprio.
Meados de maio e o outono já é o dono do pedaço no Estado de São Paulo. O mundo fica cinza, frio, vento gelado. Passo na praça e lá está o Zé, de cabelos bem cortados, com a mesma jaqueta e calça preta, em contraste com a camiseta branca. Na praça, há água acumulada em vários pontos, misturando-se às folhas secas; a areia ao redor do parque infantil está escura de tão molhada, não há crianças, nem o sorveteiro e tudo contribui para o ambiente parecer mais frio.
Pensei em trazer uma sopa quente para o Zé e meu olhar o buscou na praça... Naquele fim de tarde, o Zé parece mais feliz: Está num banco da praça e, ao seu lado, uma moça de uns 30 a 35 anos, aparentemente. Ela conversa animadamente, parece lhe explicar alguns fatos, pois suas mãos gesticulam e fazem desenhos com os dedos na água do banco, onde estão sentados. Ela sorri, parece feliz e o Zé nada diz. Balança a cabeça em sinal de afirmação... Quem seria ela? Namorada? Esposa? Filha?
Caminho devagar pela praça e, embora já distante dos dois, continuo pensando naquela imagem: o Zé e uma moça conversando na praça. O que ocorreria após a conversa? Seria, aquele momento, um instante decisivo na vida dele? Ela parecia conhecê-lo e, ao lado deles, havia uma sacola enorme, cheia de roupas. Será que ela teria trazido roupas para o Zé? Ou estaria levando-o dali?
Sigo com minhas suposições e novas perguntas, agora sobre a existência daquela nova personagem, que invade minha história... Nesse mesmo dia, retorno à praça, e o Zé não está lá. Desde aquela tarde, nunca mais o vi... Talvez, um dia, ele volte ao Largo do Pará no centro de Campinas, talvez no próximo outono.


Anna Jailma

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